Um frio na barriga e uma ocasional taquicardia. Uma sensação de vazio e quase como se já tivesse tudo acabado. Não há rotina ou perspectiva. Ainda não há futuro. Há somente o que há, que vai se transformando, coisa monstruosa, a cada segundo. Como uma explosão que se expande a engolir tudo em volta. Na rede, na noite escura, percebo que já senti isso. Quando acordei naquele dia de 2010 com um estrondo e não havia luz. Chovia como talvez eu nunca mais veria chover. Os trovões explodiam como cometas, mas não foi isso o que me acordou. Alguma outra catástrofe fora anunciada. Meu pai foi para a noite. Breu. O barranco tinha caído. Toninho estava debaixo dele. Toninho era o caseiro do vizinho. Era. Agora Toninho estava debaixo da terra. Tentei ligar para a Defesa Civil, me informaram que eu não estava sozinho no meu desespero e que não havia mais carros disponíveis. Meu pai foi cavar. Salvar Toninho. Eu fiquei com meu avô e minha mãe, ouvindo as notícias do apocalipse em seu radinho à pilha. Quando chegaram os bombeiros, ainda escuro, acharam Toninho. Já morto. Não pela terra. Incrivelmente, o interior da casa havia sido poupado, como um santuário subterrâneo ou talvez cripta para o homem sufocado pelo gás instalado incorretamente. O vizinho não se mexeu para ajudar. Ficou lá. Mais tarde, diria que foi um acidente e tentaria comprar o silêncio da família de seu funcionário. Continuamos sem luz. Árvores e terra desabadas por toda parte. Famílias, entre vizinhos e amigos, que tiveram suas casas alagadas começaram a chegar para se abrigar. Era tudo surreal. Nosso outro vizinho tinha luz, de alguma forma. Puxou um cabo para compartilhar conosco, nosso abrigo no inferno chuvoso. A sensação na época era a mesma de hoje. Algo como um pós-tempo. Viver fora do tempo, faz sentido? A sensação de que o tempo não passava, apenas existíamos. É diferente dessa vez. Temos luz em casa, não há destruição visível. Mas parece que a catástrofe iminente se aproxima como se o morro fosse cair novamente, mas em cima de todas as cabeças do planeta. E vejo meu vizinho em tanta gente. Em quem tem poder e nada faz para atenuar a dor e medo. Em quem não se preocupa com o outro. É estranho. Talvez isso nunca tenha acontecido na história moderna. Cidades paralisadas. Pessoas trancadas em casa. Mas há familiaridade. E os prospectos sombrios do que será o depois... Empregos perdidos, vidas perdidas, não mais por doença, mas pelo declínio econômico. É como se víssemos um desastre acontecendo em câmera lenta. A explosão que falei antes, como se ela viesse e não podemos sair do caminho. Daqui, não há nada a ser feito.
Horas depois, retomo. Há algo mais. Meu pai cavando, nós recebendo as famílias em casa, indo buscar nossos amigos e afogando o carro no processo. As muitas campanhas para ajudar as famílias que perderam tudo. As lágrimas derramadas, os abraços dados, os colos oferecidos. Há algo a mais que aparece nesses momentos. Quando todos, juntos, somos expostos à crueldade do mundo. Quando estamos todos vulneráveis e perdidos. Quando a morte aparece, muito real, aparece a vida também. As mãos estendidas. Vi um vídeo bonito de um homem tocando piano em sua varanda, os prédios ao redor repleto de pessoas ávidas por isso. Não era a música. A música do Titanic, tocada com muitos erros e tempo estranho. É outra coisa. Um outro homem acompanha, de sua própria varanda, com um saxofone. No fim, aplausos. Como se dissessem todos, em uníssono, estamos juntos, vamos sobreviver juntos. Essa solidariedade apocalíptica. Essa loucura que mistura cultura e algo de primal. Algo de sobrevivência. A noção total de que não vivemos sem o outro. Que precisamos de todos ao nosso redor, independente de qualquer outra coisa. O que é isso? Somos nós respondendo às ideias de direitos, dignidade, solidariedade... humanidade, etc? Ideias, conceitos, construídas por nós, produtos de um longuíssimo processo histórico da espécie... Ou... ou será que somos nós em nossa forma mais primitiva? O reconhecimento da sobrevivência apenas quando coletiva? O nosso grupo, que agora abarca toda a humanidade? Deus sabe... Talvez o primeiro seja fruto do segundo. Talvez a própria ideia de Natureza seja mera fabricação, quem sabe... Mas é algo de bonito. Como uma vela que não apaga numa nevasca. Enquanto houver luz, enquanto houver calor... talvez ainda dê pra pensar num amanhã.
blá
quinta-feira, 19 de março de 2020
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
Dias... incompleto/sem revisão
Por que ele pulou? Por que ele pulou? Já fazia uma semana desde o enterro de André e Dias não tirava o pensamento da cabeça, por mais que tentasse, por mais que esfregasse o rosto com força até abrir feridas. Puxava pedaços de pele flácida como que pra arrancar a inquietação de seu corpo. Nada. Por que ele pulou? Por que ele pulou? Não fazia sentido... André sempre foi querido, amado, bonito, estudou numa boa faculdade, trabalhava, recebia um bom salário, teve várias namoradas, muitos amigos, sua família o amava muito. Por que ele pulou? Que sentido queria tirar disso, aliás? Lembrava-se como relâmpago do diálogo que teve na mesma noite. Ele brincou que ia pular. Não, ele não brincou, ele avisou. E Dias não fez nada. Seria André pedindo socorro? E se Dias tivesse entendido a mensagem? Algo mudaria? Será que André não disfarçaria e pularia de todo jeito? Se não naquele dia, em outro. Se não daquela varanda, de outra. Mas por que ele faria isso? Por que ele pularia? Problemas com drogas? Depressão? O que é? Ninguém que o conhecia esperava isso acontecer. Ninguém que o conhecia poderia sequer imaginar que André fosse pular. Mas pulou. Alguns o acusaram. Falta de Deus, falta de amor, falta disso e daquilo, falta, falta. O que faltava? Será que faltava algo mesmo a ele? E Dias? Será que pularia também? Olhava com os olhos arregalados e sempre muito vermelhos o teto empoeirado de seu quarto. Será que pularia também? Levantou-se e cambaleou até a janela, donde olhou para baixo. As pessoas caminhando nas calçadas, indo para o trabalho, para escola, passeando com seus cachorros. Será que não sabiam que seu amigo tinha se matado? Que viu o corpo quase sem vida de seu amigo e o teve nos braços? Que perdeu seu amigo? Como poderiam andar tão tranquilamente? Que merda, caralho, porra, puta que pariu, que merda, que merda, que merda, PORRA. Será que pularia também? As sobrancelhas franzidas de Dias começavam a doer-lhe a testa. Seu coração cansava-se de disparar a todo momento. Sua respiração sem ritmo, suas mãos sempre encharcadas de suor. Será que pularia também? A raiva das pessoas indiferentes, a raiva do sol que brilhava e do céu azul salpicado de nuvens que dançavam ao vento do verão como se nada, como se nada, como se nada tivesse acontecido. Será que não sabiam? Como poderiam não saber? Que seu amigo, seu melhor amigo, seu irmão, tinha se matado? Será que pularia também? Nesse dia lindo. Para que soubessem. Para que caísse um temporal sobre suas cabeças, com raios de concreto e gotas de sangue, para que o tempo fechasse, para que soubessem, para que soubessem que ele pulou.
Dias não pulou. Dias não queria pular. Dias não queria, não queria, não queria morrer. Dias sentia saudade de André. Muita saudade. Era uma dor dilacerante que só aumentava quanto mais insuportável era sua incompreensão. Filho da puta, será que sequer pensou nele, sequer pensou em Dias antes de fazer isso? Filho da puta, agora ele tava daquele jeito patético. O ser patético, chorando e soluçando na janela se perguntando porque porque porque porque.
Entre catarros e lágrimas, Dias fechou os olhos e foi se acalmando. Talvez, pensou, talvez seja impossível saber o que se passa na cabeça de outra pessoa.
Dias não pulou. Dias não queria pular. Dias não queria, não queria, não queria morrer. Dias sentia saudade de André. Muita saudade. Era uma dor dilacerante que só aumentava quanto mais insuportável era sua incompreensão. Filho da puta, será que sequer pensou nele, sequer pensou em Dias antes de fazer isso? Filho da puta, agora ele tava daquele jeito patético. O ser patético, chorando e soluçando na janela se perguntando porque porque porque porque.
Entre catarros e lágrimas, Dias fechou os olhos e foi se acalmando. Talvez, pensou, talvez seja impossível saber o que se passa na cabeça de outra pessoa.
O olhar da eternidade - André - incompleto/sem revisão
- Qual é, Dias, chega aqui... Você acha que morre se pular daqui?
Dias franziu a testa e esticou o rosto ao máximo que sua curiosidade embriagada poderia fazer.
- Sei lá, cara. Talvez. Acho que sim. - deu uma risada - Tá pensando em pular, é?
André riu de volta. Morreu o assunto. Falaram de outras coisas. Banalidades, conhecidos, o clima da festa...
Entraram de volta no apartamento apertado. O ambiente escuro e claustrofóbico, de música ensurdecedora, lembrava o de uma rave barata. Dezenas de pessoas dançavam, poucas caras novas num mar de conhecidos. Quando se aproximou da meia-noite, a música parou e todos contaram juntos os segundos até o ano novo. Alguns desceram do prédio e foram para rua, outros se amontoaram na varanda para ver os fogos-de-artifício.
De volta à rave.
Devia ser próximo às três da manhã quando uma menina, uma das desconhecidas, foi para a varanda fumar um cigarro. Distraída, acendeu, tragou, soltou, pelo menos três vezes, até olhar para baixo. Sua visão zonza demorou para reconhecer o borrão preto no pátio. Um corpo retorcido olhava para ela como com a profundidade do abismo. Parecia ele mesmo ser a queda. Ele mesmo ser a eternidade. Aquele olhar... aquele olhar que a fez levar a mão à boca, se queimar com o cigarro sem perceber, encher seus olhos de lágrimas, como se seu corpo tentasse cegá-la como mecanismo de defesa, suas pernas cederem e, após segundos intermináveis em que apenas ar entrava-lhe à garganta e nada saía, aquele olhar a fez gritar.
Era André que caía. Depois de flertar algumas vezes com aquela sacada e seu além, sob o pretexto de fumar ou tomar um ar, André pulou. Não hesitou, apenas pulou. O mais horrendo salto acrobático. E as horas que lhe demoravam a passar até que alcançasse o concreto ainda quente do sol de verão. E os vislumbres que teve, de ponta cabeça, girando como um astronauta, das demais varandas do prédio, as famílias e amigos ali reunidos para comemorar o ano-novo. E os risos e choros e brigas e sonos que pôde testemunhar, por aqueles dias suspensos. Nada disso o fez se arrepender. Nunca havia deixado de reconhecer a beleza, a grandiosidade da vida... Era só que... não dava mais. Pra ele, não dava mais. Não foi o ato de pular que fez a música da festa parar. Nem fez os sorrisos murcharem ou o céu nublar. A vida que segue e nunca pararia por ele. Estava contente por isso.
O primeiro arrependimento veio quando encontrou quem procurava. O implacável concreto. Não saberia dizer onde seu amante o tocou primeiro. Seus ossos, quase que instantaneamente pareciam liquefazerem-se e, então, solidificarem-se novamente já fora de seu corpo. As costelas já não eram mais costelas, senão um amontoado de cacos de um prato de vidro que uma criança desastrada e teimosa quebrou ao tentar usar. Suas pernas lembravam a de seus bonecos de pano, dobrando-se em várias posições. O abdômen, aberto, expunha carnes e órgãos que nunca sequer reconheceria. Não poderia nem mesmo apreciar o inusitado das associações com coisas da infância. Dor. Era apenas isso. Dor. Não havia nem mesmo a consciência de ter sobrevivido. Apenas a dor mais excruciante que já viveu e viverá. E então, mais nada. O que já fora seu corpo ainda estava do mesmo jeito, mas a dor não mais. Só sentia os próprios lábios abrirem-se e fecharem-se, como um peixe recém pescado, nas mãos de seu algoz. Buscava ar. Buscava vida. Mas não era André quem buscava, mas seu corpo, de forma autônoma. Se pudesse sentir algo além da agoniante sensação de não haver ar suficiente, isso o irritaria. Desejaria fechar a boca. Abraçar o fim, mesmo que fosse por sufocamento, mas não conseguiria. Seu corpo era mais forte, mesmo naquele estado. Abria e fechava, provocando sons guturais na garganta que nunca seriam confundidos com os de um ser-humano. Não sabe quanto tempo ficou ali, em sua busca por ar, por ar, por ar, até que a menina o visse.
Os primeiros a chegarem não foram os paramédicos ou sequer o porteiro que dormia irritado por ter que trabalhar no ano-novo e sonhava com sua esposa se divertindo e, quem sabe, o traindo com alguém. Os passos da manada de curiosos bêbados e drogados vieram rápido. Entre eles, Dias, que chorava e gaguejava e engasgava incessantemente, se ajoelhou ao seu lado e, vezes sussurrando, vezes gritando, repetia "que porra é essa, André?! Que porra é essa?". André enxergava. Mas para além de Dias, só podia ver sombras alongadas ao seu redor, uma multidão irreconhecível de fantasmas. André ouvia. Mas eram murmuros, exclamações, choros e palavras incompreensíveis. A única certeza é que falavam dele. Às vezes, aparecia um "sempre foi meio doido", "eu falei que uma hora isso ia acontecer", "Jesus...", "era tão quieto"... De sua parte, só permanecia em sua sensação de semi-afogamento. E a boca abria. E fechava. Como um peixe resoluto nas mãos firmes do pescador. Teve certeza absoluta de que estava no inferno.
Quando a ambulância chegou, Dias não se moveu. Ainda murmurava para o amigo caído. Os médicos se dividiram. Alguns examinaram André, uma luz branca cegou seus olhos a tempo de impedi-lo de ver as faces de horror dos médicos diante do ex-corpo agora iluminado. Outros, perguntavam o que aconteceu. Um, mais forte, motorista da ambulância, pedia para Dias se retirar e, então, o arrastou para longe. Dias não esboçou reação. Continuava a chorar, o olhar vidrado para o chão como se ainda fosse seu amigo em seu campo de visão. Quando entubaram André e o levaram já na maca para a ambulância, seus olhos finalmente se fecharam.
---------
Só se ouvia o branco. E se cheirava o branco. E André era, ele mesmo, o branco. Parte de uma camada insípida de quase existência. O intransponível vazio.
Quebrado.
O murmurar de vozes despertaram a consciência em André. Não entendia o sentido das palavras, mas invadiu-lhe uma sensação familiar. Abriu os olhos. Branco. As luzes higienizadas do quarto de hospital. As silhuetas cinzas - eram mais de uma - que conversavam, dançavam diante de seus olhos semicerrados. Os aparelhos que o mantinham vivo - não deu certo - invadiram o branco sonoro ao mesmo tempo em que as primeiras palavras se tornaram compreensíveis: "...fizemos o possível... pneumotórax... grave... milagre... mantê-lo vivo". A confirmação final. Não deu certo. A visão tornou-se mais turva. As pupilas de André rodopiavam no branco olho arregalado. O coração disparou. Os aparelhos acompanharam o ritmo. A médica deixou as silhuetas para examinar o paciente. Um movimento turvo e a escuridão novamente.
Mais uma vez. Dessa vez o silêncio embalou seu despertar. Seus olhos e ouvidos se acostumaram com mais facilidade. O branco foi, aos poucos, se dissipando para dar lugar a linhas e texturas no teto de gesso, aos sons das máquinas, à respiração fraca de sua mãe, interrompida por soluços e profundas inspirações. O som áspero de seu pai a acariciá-la por sobre o tecido da roupa. Os dentes de um dos dois, cravados com força, rangendo, como se mastigasse a mais rígida mecha de ar.
- Filho... - sussurrou sua mãe, se levantando bruscamente. O arranhar da cadeira feriu a sensível audição de André, que respondeu com um semicerrar de olhos.
- Filho! - expandiu ela, alcançando-o.
Foram as únicas palavras. Sua mãe desabou. Se tentasse falar mais alguma coisa sairia entrecortado, abafado, esmagado por entre as lufadas de ar, torrentes de lágrimas e catarro que escorriam como nascente de rio bravio.
André tentou confortá-la, botar a mão em sua cabeça, fazer-lhe um cafuné. Odiava ver a mãe assim. Nunca fora sua intenção vê-la assim. Não pôde. Sua mão não respondia. Percebera então a situação em que se encontrava. Lágrimas resignadas lhe subiram aos olhos e molharam-lhe a face. Era tudo o que podia fazer. Um vegetal que se molhava sozinho. O pior dos piores cenários.
Seu pai, de pé atrás da mãe, mordia o lábio inferior numa careta aterrorizante enquanto sua face encharcada de suor era lavada pela sal que, a contra gosto, caía-lhe dos olhos.
Não disseram nada. Não havia nada a dizer. Não havia perguntas que qualquer um pudesse responder ou súplicas que pudessem atender. O fato estava consumado e estava ali, diante dos três.
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Dias franziu a testa e esticou o rosto ao máximo que sua curiosidade embriagada poderia fazer.
- Sei lá, cara. Talvez. Acho que sim. - deu uma risada - Tá pensando em pular, é?
André riu de volta. Morreu o assunto. Falaram de outras coisas. Banalidades, conhecidos, o clima da festa...
Entraram de volta no apartamento apertado. O ambiente escuro e claustrofóbico, de música ensurdecedora, lembrava o de uma rave barata. Dezenas de pessoas dançavam, poucas caras novas num mar de conhecidos. Quando se aproximou da meia-noite, a música parou e todos contaram juntos os segundos até o ano novo. Alguns desceram do prédio e foram para rua, outros se amontoaram na varanda para ver os fogos-de-artifício.
De volta à rave.
Devia ser próximo às três da manhã quando uma menina, uma das desconhecidas, foi para a varanda fumar um cigarro. Distraída, acendeu, tragou, soltou, pelo menos três vezes, até olhar para baixo. Sua visão zonza demorou para reconhecer o borrão preto no pátio. Um corpo retorcido olhava para ela como com a profundidade do abismo. Parecia ele mesmo ser a queda. Ele mesmo ser a eternidade. Aquele olhar... aquele olhar que a fez levar a mão à boca, se queimar com o cigarro sem perceber, encher seus olhos de lágrimas, como se seu corpo tentasse cegá-la como mecanismo de defesa, suas pernas cederem e, após segundos intermináveis em que apenas ar entrava-lhe à garganta e nada saía, aquele olhar a fez gritar.
Era André que caía. Depois de flertar algumas vezes com aquela sacada e seu além, sob o pretexto de fumar ou tomar um ar, André pulou. Não hesitou, apenas pulou. O mais horrendo salto acrobático. E as horas que lhe demoravam a passar até que alcançasse o concreto ainda quente do sol de verão. E os vislumbres que teve, de ponta cabeça, girando como um astronauta, das demais varandas do prédio, as famílias e amigos ali reunidos para comemorar o ano-novo. E os risos e choros e brigas e sonos que pôde testemunhar, por aqueles dias suspensos. Nada disso o fez se arrepender. Nunca havia deixado de reconhecer a beleza, a grandiosidade da vida... Era só que... não dava mais. Pra ele, não dava mais. Não foi o ato de pular que fez a música da festa parar. Nem fez os sorrisos murcharem ou o céu nublar. A vida que segue e nunca pararia por ele. Estava contente por isso.
O primeiro arrependimento veio quando encontrou quem procurava. O implacável concreto. Não saberia dizer onde seu amante o tocou primeiro. Seus ossos, quase que instantaneamente pareciam liquefazerem-se e, então, solidificarem-se novamente já fora de seu corpo. As costelas já não eram mais costelas, senão um amontoado de cacos de um prato de vidro que uma criança desastrada e teimosa quebrou ao tentar usar. Suas pernas lembravam a de seus bonecos de pano, dobrando-se em várias posições. O abdômen, aberto, expunha carnes e órgãos que nunca sequer reconheceria. Não poderia nem mesmo apreciar o inusitado das associações com coisas da infância. Dor. Era apenas isso. Dor. Não havia nem mesmo a consciência de ter sobrevivido. Apenas a dor mais excruciante que já viveu e viverá. E então, mais nada. O que já fora seu corpo ainda estava do mesmo jeito, mas a dor não mais. Só sentia os próprios lábios abrirem-se e fecharem-se, como um peixe recém pescado, nas mãos de seu algoz. Buscava ar. Buscava vida. Mas não era André quem buscava, mas seu corpo, de forma autônoma. Se pudesse sentir algo além da agoniante sensação de não haver ar suficiente, isso o irritaria. Desejaria fechar a boca. Abraçar o fim, mesmo que fosse por sufocamento, mas não conseguiria. Seu corpo era mais forte, mesmo naquele estado. Abria e fechava, provocando sons guturais na garganta que nunca seriam confundidos com os de um ser-humano. Não sabe quanto tempo ficou ali, em sua busca por ar, por ar, por ar, até que a menina o visse.
Os primeiros a chegarem não foram os paramédicos ou sequer o porteiro que dormia irritado por ter que trabalhar no ano-novo e sonhava com sua esposa se divertindo e, quem sabe, o traindo com alguém. Os passos da manada de curiosos bêbados e drogados vieram rápido. Entre eles, Dias, que chorava e gaguejava e engasgava incessantemente, se ajoelhou ao seu lado e, vezes sussurrando, vezes gritando, repetia "que porra é essa, André?! Que porra é essa?". André enxergava. Mas para além de Dias, só podia ver sombras alongadas ao seu redor, uma multidão irreconhecível de fantasmas. André ouvia. Mas eram murmuros, exclamações, choros e palavras incompreensíveis. A única certeza é que falavam dele. Às vezes, aparecia um "sempre foi meio doido", "eu falei que uma hora isso ia acontecer", "Jesus...", "era tão quieto"... De sua parte, só permanecia em sua sensação de semi-afogamento. E a boca abria. E fechava. Como um peixe resoluto nas mãos firmes do pescador. Teve certeza absoluta de que estava no inferno.
Quando a ambulância chegou, Dias não se moveu. Ainda murmurava para o amigo caído. Os médicos se dividiram. Alguns examinaram André, uma luz branca cegou seus olhos a tempo de impedi-lo de ver as faces de horror dos médicos diante do ex-corpo agora iluminado. Outros, perguntavam o que aconteceu. Um, mais forte, motorista da ambulância, pedia para Dias se retirar e, então, o arrastou para longe. Dias não esboçou reação. Continuava a chorar, o olhar vidrado para o chão como se ainda fosse seu amigo em seu campo de visão. Quando entubaram André e o levaram já na maca para a ambulância, seus olhos finalmente se fecharam.
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Só se ouvia o branco. E se cheirava o branco. E André era, ele mesmo, o branco. Parte de uma camada insípida de quase existência. O intransponível vazio.
Quebrado.
O murmurar de vozes despertaram a consciência em André. Não entendia o sentido das palavras, mas invadiu-lhe uma sensação familiar. Abriu os olhos. Branco. As luzes higienizadas do quarto de hospital. As silhuetas cinzas - eram mais de uma - que conversavam, dançavam diante de seus olhos semicerrados. Os aparelhos que o mantinham vivo - não deu certo - invadiram o branco sonoro ao mesmo tempo em que as primeiras palavras se tornaram compreensíveis: "...fizemos o possível... pneumotórax... grave... milagre... mantê-lo vivo". A confirmação final. Não deu certo. A visão tornou-se mais turva. As pupilas de André rodopiavam no branco olho arregalado. O coração disparou. Os aparelhos acompanharam o ritmo. A médica deixou as silhuetas para examinar o paciente. Um movimento turvo e a escuridão novamente.
Mais uma vez. Dessa vez o silêncio embalou seu despertar. Seus olhos e ouvidos se acostumaram com mais facilidade. O branco foi, aos poucos, se dissipando para dar lugar a linhas e texturas no teto de gesso, aos sons das máquinas, à respiração fraca de sua mãe, interrompida por soluços e profundas inspirações. O som áspero de seu pai a acariciá-la por sobre o tecido da roupa. Os dentes de um dos dois, cravados com força, rangendo, como se mastigasse a mais rígida mecha de ar.
- Filho... - sussurrou sua mãe, se levantando bruscamente. O arranhar da cadeira feriu a sensível audição de André, que respondeu com um semicerrar de olhos.
- Filho! - expandiu ela, alcançando-o.
Foram as únicas palavras. Sua mãe desabou. Se tentasse falar mais alguma coisa sairia entrecortado, abafado, esmagado por entre as lufadas de ar, torrentes de lágrimas e catarro que escorriam como nascente de rio bravio.
André tentou confortá-la, botar a mão em sua cabeça, fazer-lhe um cafuné. Odiava ver a mãe assim. Nunca fora sua intenção vê-la assim. Não pôde. Sua mão não respondia. Percebera então a situação em que se encontrava. Lágrimas resignadas lhe subiram aos olhos e molharam-lhe a face. Era tudo o que podia fazer. Um vegetal que se molhava sozinho. O pior dos piores cenários.
Seu pai, de pé atrás da mãe, mordia o lábio inferior numa careta aterrorizante enquanto sua face encharcada de suor era lavada pela sal que, a contra gosto, caía-lhe dos olhos.
Não disseram nada. Não havia nada a dizer. Não havia perguntas que qualquer um pudesse responder ou súplicas que pudessem atender. O fato estava consumado e estava ali, diante dos três.
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quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
aquele gosto amargo do cigarro lhe incomodava e agraciava ao mesmo tempo. de alguma forma, sentia prazer naquilo... naquela sensação de estar cada vez mais próximo do fim. porque, na verdade, sentia que não aguentava mais. como já tivera a ideia de que nenhuma vida é fútil, tudo faz parte de um processo e tudo tem seu tempo, agora se cansara. sua vida era inútil. um amontoado de nada a permanecer, como pedra não vista, para sempre. pedra que é chutada sem perceber, pedrinha de asfalto que, aos poucos, com erosão, se torna pó de coisa alguma e some sem chamar atenção. o gosto do cigarro lhe aproximava da morte, então gostava. não acreditava em vida pós morte, então dizer que descansaria era bobagem. mas acreditava na vida pré morte... e esta lhe parecia insuportável. o galeano disse que os mais sensíveis eram aqueles que caíam e não conseguiam se levantar. não sabia se se considerava sensível. mas sabia que estava caído e lhe faltavam forças para não estar mais. o mundo visto do chão parecia gigante. o próprio homem de pé, inalcançável. sendo que já fora um homem de pé. entendeu que não mais voltaria a sê-lo. Como um paraplégico sem ajuda, só lhe restava rastejar. e o rastejo só pode durar tanto tempo até que as roupas se rasguem e a pele se esfole, pintando de vermelho o caminho, como o rastro do fracasso. via os homens de pé passando sem se importarem com ele. vez em quando, alguém caía, e ali permanecia, como ele, o olhar cansado, moribundo. pensava se teria aquele olhar também. o olhar de quem não enxerga mais, de quem não deseja mais. o olhar acostumado com o concreto quente do chão a lhe queimar a face. ficou lá, olhando sem enxergar, se esquecendo de comer, se esquecendo de se limpar, se esquecendo de respirar. o gosto amargo do cigarro foi a última coisa que sentiu antes de morrer, um misto de desgosto, deleite e alívio. aquele gosto horrível, mas necessário.
quinta-feira, 23 de agosto de 2018
Dona Sílvia
Dona Sílvia não era e nunca havia sido dona de nada. As pessoas a chamavam assim por mera cortesia e convenção social. Diz a etiqueta brasileira que é de bom tom chamar pessoas idosas tal qual elas fossem ricas. Parece que, ao menos em termos de vocativos, estar próximo da morte é ascender socialmente. Era, portanto, Dona Sílvia e Seu Edinho. Seu Edinho, logo ele que, de verdade, nunca fora de ninguém - nem dele próprio. Diferente de Dona Sílvia, que lidava com naturalidade o vocativo desde seus primeiros fios de cabelo branco, Seu Edinho praguejava sempre que se referiam a ele como "Seu". "Seu é o caralho, ôoo (...)". Talvez fosse pela acusação de sua idade avançada; ou talvez fosse o fato contraditório de o chamarem por vocativos geralmente destinados a pessoas com largo valor de bens, enquanto que o maior bem de Seu Edinho era sua casa de dois quartos no subúrbio, feita a mão pelo avô, Deus sabe quantos anos atrás. Edinho deu sorte, de certa forma. Seus pais nunca tiveram irmãos nem outros filhos. Foi fácil para seus avós nunca deixarem dúvidas sobre a única herança que tinham, nem nunca houve a obrigação do compartilhamento, a não ser com sua esposa, Sílvia - na época do matrimônio -, ou Dona Sílvia - no presente. A linhagem já simples dos Silva simplificou-se mais ainda, visto que Dona Sílvia Silva e Seu Edinho Silva não deixaram herdeiros. Seu Edinho não pensava no que seria feito de sua única posse uma vez que falecesse, fugia tais pensamentos fúnebres. Mas evitar não lhe adiantou muito posto que, de fato, faleceu. E Dona Sílvia, agora sim dona de algo, também não soube o que fazer. Não acostumada a ser dona, Dona Sílvia acabou por abrir mão da casa em que passou a morar sozinha para viver com a irmã, Dona Célia, dona, ao menos de casa própria. Quando Seu Edinho morreu, Dona Sílvia chorou. Não porque o amasse e fosse sentir sua falta. À bem da verdade, Sílvia nunca amara Edinho, assim como Dona Sílvia não ama Seu Edinho. Casaram porque tinham que casar, porque é assim que se faz. Não ter filhos não foi um grande peso em sua consciência, apesar dos muitos questionamentos vindos da escarça família: sua irmã mais velha, sua há muito falecida mãe solteira, Dona Suzélia, abandonada pelo então marido no momento em que engravidou de Sílvia, exatamente no aniversário de dois anos de Célia. Mas Sílvia não se importaria de ter filhos, assim como também não se importou de não ter. Sua vida antes e durante seu relacionamento com Edinho foi mais ou menos assim. Pode ser, mas pode ser que não também. Enquanto transavam, Sílvia transava. Quando não transavam mais, Sílvia não transava. Enquanto estavam juntos, Sílvia lá estava. E quando não estiveram mais, Dona Sílvia não estava. Apesar disso, chorou com a morte de seu marido. Sete grossas e mudas lágrimas lhe escorreram pela face enquanto ligava para a emergência, o corpo inerte e morto de Seu Edinho, prostrado na cama, de cuecas samba-canção e sem camisa. Mais cinco ou seis lágrimas em seu vazio funeral. Só foram Dona Sílvia, Dona Célia e três ou quatro amigos de Seu Edinho, da época da repartição, com quem não falava há, pelo menos, uns dez anos. Diante da casa mais vazia, que agora lhe pertencia, Dona Sílvia decidiu que aquilo nunca fora nem nunca seria dela. Sentia-se usurpando o bem de outra pessoa, de Seu Edinho e da agora extinta família Silva. Isso a incomodava. Olhava para o próprio nome, entalhado na identidade, e estranhava. Sílvia Silva não era ela. Silva não era seu. Abriu mão novamente. Se perdera o direito do nome de solteira quando aceitou o nome do marido, agora que era viúva, não usaria nenhum. De Sílvia Nogueira para Sílvia Silva, para Dona Sílvia Silva para, finalmente, Dona Sílvia e, então, Senhora.
A Senhora era nova no bairro de Dona Célia. Ninguém a conhecia, a não ser quando caminhava pelas manhãs com sua irmã e era por ela apresentada. Foi nesse bairro que a Senhora conheceu um vendedor de cocos, pelo nome de Seu Manoel. Seu Manoel já havia sido e ainda era de muitas pessoas. Recebia os cocos de um fornecedor geral da região que lhe cobrava comissão por cada fruta vendida. Era, portanto, dele. Fazia bicos e quebrava galhos de vários moradores do bairro, sem titubear. Era deles. Deitava-se com muitas mulheres desde jovem e, em ocasiões, alguns homens. Fora deles também. E quando conheceu a Senhora, perguntou-lhe o nome, almejando ser dela também.
A Senhora hesitou. um momento de mudez.
- Samantha, muito prazer.
Samantha não sabia porque escolhera esse nome ou sequer por que vira a necessidade de escolher um nome novo.
- Seu Manoel - ofereceu Seu Manoel, alcançando a mão ossuda e enrugada de Samantha e a coroando com um beijo molhado.
Seu Manoel, do bairro de Dona Célia, foi, em breve, de Samantha. Assim como o foram outros homens - e algumas mulheres. Seu Jucélio, Seu Júlio, Seu Cabral, Seu Souza, Seu Cícero, Sua Aparecida, Sua Helena, Sua Alice...
Samantha não era mais Dona, mas era, pela primeira vez, dona. Samantha, pela primeira vez, anunciava sua vontade, mesmo que sem entender por que o fazia. Só o fazia. E a cada corpo conquistado, dominado, Samantha era mais dona de si. Fez-se conhecida no bairro. Dona Célia, é claro, ficou escandalizada. Mas passado algum tempo, deu de ombros. A verdade é que não estava tão interessada assim no comportamento sexual da irmã.
Quando Samantha morreu, houve confusão no funeral lotado. Ninguém, com exceção de Dona Célia, sabia quem era aquela Sílvia Silva, de nome ridículo lapidado no túmulo.
A Senhora era nova no bairro de Dona Célia. Ninguém a conhecia, a não ser quando caminhava pelas manhãs com sua irmã e era por ela apresentada. Foi nesse bairro que a Senhora conheceu um vendedor de cocos, pelo nome de Seu Manoel. Seu Manoel já havia sido e ainda era de muitas pessoas. Recebia os cocos de um fornecedor geral da região que lhe cobrava comissão por cada fruta vendida. Era, portanto, dele. Fazia bicos e quebrava galhos de vários moradores do bairro, sem titubear. Era deles. Deitava-se com muitas mulheres desde jovem e, em ocasiões, alguns homens. Fora deles também. E quando conheceu a Senhora, perguntou-lhe o nome, almejando ser dela também.
A Senhora hesitou. um momento de mudez.
- Samantha, muito prazer.
Samantha não sabia porque escolhera esse nome ou sequer por que vira a necessidade de escolher um nome novo.
- Seu Manoel - ofereceu Seu Manoel, alcançando a mão ossuda e enrugada de Samantha e a coroando com um beijo molhado.
Seu Manoel, do bairro de Dona Célia, foi, em breve, de Samantha. Assim como o foram outros homens - e algumas mulheres. Seu Jucélio, Seu Júlio, Seu Cabral, Seu Souza, Seu Cícero, Sua Aparecida, Sua Helena, Sua Alice...
Samantha não era mais Dona, mas era, pela primeira vez, dona. Samantha, pela primeira vez, anunciava sua vontade, mesmo que sem entender por que o fazia. Só o fazia. E a cada corpo conquistado, dominado, Samantha era mais dona de si. Fez-se conhecida no bairro. Dona Célia, é claro, ficou escandalizada. Mas passado algum tempo, deu de ombros. A verdade é que não estava tão interessada assim no comportamento sexual da irmã.
Quando Samantha morreu, houve confusão no funeral lotado. Ninguém, com exceção de Dona Célia, sabia quem era aquela Sílvia Silva, de nome ridículo lapidado no túmulo.
quinta-feira, 21 de junho de 2018
o que é o sexo? um momento frívolo de prazer, diversão, passa-tempo carnal... uma ligação íntima... assunto de bar, placebo pra solidão? dá medo e tenta afastar o medo, abre e fecha, tal qual os movimentos pulsantes - acompanhando o sangue como lombada orgânica. o vai e vem de prazer e tensão, cansaço e leveza, vida e morte. saúde e doença. entrar e sair, permanecer e fugir. gritar, calar, sorrir, chorar. o que é o sexo? tema de poesia barata, voz em off de filme pretensioso com encadeamento lento. sexo é violência, é relação de poder, é machismo, misoginia. mas é quebrar, torcer, desmaiar, desarmar. palhaçada... no fim das contas não é mais do que uma coisa qualquer. um saco essas pessoas que tentam achar significado profundo no ato de respirar. sexo é respirar. é o que qualquer um pode fazer e faz, inevitavelmente.
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olhar por sobre os ombros e ver, lá atrás, o colorido pomar de sensações passadas... lembrar, os olhos clichês semicerrados pela nostalgia doce, como era boa a arrogância de se achar melhor do que tudo e todos. aquele pomar que só poderia dar frutas podres hoje seca diante da colheita: a mais putrefata feira. a arrogância me levou aos céus e a realidade das coisas, como a gravidade, me fez tombar. ainda de ossos quebrados, tento cavar a terra com os dentes, cuspindo novas sementes que ainda não encontrei. mas sei que talvez não encontre tempo para substituir o podre pomar que levou anos para crescer. gostaria aqui de reafirmar que, apesar de fétido, era lindo. talvez alguma feia flor apareça neste deserto e me contemple com algum delicado perfume.
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tenho certeza de que você teve suas razões. e algumas vezes penso que talvez tenha errado mais do que você. é certo de que nunca mais nos veremos como antes, quanto mais você ler isso. tenho raiva e arrependimentos, mas também confusões e curiosidades. o que foi real e o que não foi? ironia tal pergunta vir de alguém que joga com a realidade. a falência dos conceitos pós-modernos está justamente em precisarmos de um chão para nos sustentar. nem que seja um pé - não, um dedo! um dedo basta para gritar todas as mentiras sobre as verdades. mas precisa um dedo. você me amou? você jurou até o fim, até o derradeiro desastre, que sim. nunca acreditei... mas também nunca entendi se não acreditava em você ou em mim. ultimamente tem sido difícil pensar sem os clichês. Mas, falando nisso, aí vem mais um: o clichê só existe porque ele deve espelhar a realidade, não é mesmo? de todo jeito, contra o clichê, apenas a sinceridade: não espero que você seja feliz [e nem que a desgraça lhe venha], só gostaria que não voltasse a me assombrar, por favor. continuando com a franqueza, estou de saco cheio de revisitar nossas memórias que são tão, mas tão curtas e finitas, que não consigo entender porque sua dança em minha cabeça não termina. é como um daqueles gifs horrorosos e entediantes mas que, por algum motivo, estão sempre voltando. em looping. nesse momento, não sei nem dizer em que parte do mundo você está. isso não é bom nem ruim. penso que gostaria de dizer foda-se para tudo o que te envolve mas, ao mesmo tempo, penso que talvez gostaria de saber. queria querer te odiar. ou não. ou apenas não queria querer querer te odiar. talvez o ponto seja querer não querer nada que te traga. mas aqui estou escrevendo para o vazio e fingindo que ainda nos falamos. e todo grito contra a parede volta a mim. VAI SE FODER. foi pra parede, que gritou de volta. é o assombro dos ecos e reflexos e dos abismos niilistas. o que nos olha e se assemelha a nós e, por isso mesmo, é tão mais assustador. é como encarar as próprias olheiras e cabelos brancos e constatar a falência de si. Isso que me tornei? Um buraco, um nada, um VAI SE FODER?! Encarar e lidar... pular no abismo é pular em si e é disso que tenho mais medo. Se já é sinistro seu mero vislumbre, que horrores não encontrarei em seu breu? Viu só? Não é mais sobre você. Nunca foi sobre você. Você já foi real, agora é só um dispositivo. Eu rio melancólico toda vez que me pego num pensamento, como se apenas então tivesse percebido minhas intenções. E aí está, ao vivo e a cores, todo o fluxo que me levou a perceber que você, como tantos, não existe. Sou novamente eu falando de mim para mim. Já estou no abismo a muito tempo.
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olhar por sobre os ombros e ver, lá atrás, o colorido pomar de sensações passadas... lembrar, os olhos clichês semicerrados pela nostalgia doce, como era boa a arrogância de se achar melhor do que tudo e todos. aquele pomar que só poderia dar frutas podres hoje seca diante da colheita: a mais putrefata feira. a arrogância me levou aos céus e a realidade das coisas, como a gravidade, me fez tombar. ainda de ossos quebrados, tento cavar a terra com os dentes, cuspindo novas sementes que ainda não encontrei. mas sei que talvez não encontre tempo para substituir o podre pomar que levou anos para crescer. gostaria aqui de reafirmar que, apesar de fétido, era lindo. talvez alguma feia flor apareça neste deserto e me contemple com algum delicado perfume.
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tenho certeza de que você teve suas razões. e algumas vezes penso que talvez tenha errado mais do que você. é certo de que nunca mais nos veremos como antes, quanto mais você ler isso. tenho raiva e arrependimentos, mas também confusões e curiosidades. o que foi real e o que não foi? ironia tal pergunta vir de alguém que joga com a realidade. a falência dos conceitos pós-modernos está justamente em precisarmos de um chão para nos sustentar. nem que seja um pé - não, um dedo! um dedo basta para gritar todas as mentiras sobre as verdades. mas precisa um dedo. você me amou? você jurou até o fim, até o derradeiro desastre, que sim. nunca acreditei... mas também nunca entendi se não acreditava em você ou em mim. ultimamente tem sido difícil pensar sem os clichês. Mas, falando nisso, aí vem mais um: o clichê só existe porque ele deve espelhar a realidade, não é mesmo? de todo jeito, contra o clichê, apenas a sinceridade: não espero que você seja feliz [e nem que a desgraça lhe venha], só gostaria que não voltasse a me assombrar, por favor. continuando com a franqueza, estou de saco cheio de revisitar nossas memórias que são tão, mas tão curtas e finitas, que não consigo entender porque sua dança em minha cabeça não termina. é como um daqueles gifs horrorosos e entediantes mas que, por algum motivo, estão sempre voltando. em looping. nesse momento, não sei nem dizer em que parte do mundo você está. isso não é bom nem ruim. penso que gostaria de dizer foda-se para tudo o que te envolve mas, ao mesmo tempo, penso que talvez gostaria de saber. queria querer te odiar. ou não. ou apenas não queria querer querer te odiar. talvez o ponto seja querer não querer nada que te traga. mas aqui estou escrevendo para o vazio e fingindo que ainda nos falamos. e todo grito contra a parede volta a mim. VAI SE FODER. foi pra parede, que gritou de volta. é o assombro dos ecos e reflexos e dos abismos niilistas. o que nos olha e se assemelha a nós e, por isso mesmo, é tão mais assustador. é como encarar as próprias olheiras e cabelos brancos e constatar a falência de si. Isso que me tornei? Um buraco, um nada, um VAI SE FODER?! Encarar e lidar... pular no abismo é pular em si e é disso que tenho mais medo. Se já é sinistro seu mero vislumbre, que horrores não encontrarei em seu breu? Viu só? Não é mais sobre você. Nunca foi sobre você. Você já foi real, agora é só um dispositivo. Eu rio melancólico toda vez que me pego num pensamento, como se apenas então tivesse percebido minhas intenções. E aí está, ao vivo e a cores, todo o fluxo que me levou a perceber que você, como tantos, não existe. Sou novamente eu falando de mim para mim. Já estou no abismo a muito tempo.
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
das despedidas
foi com aquele sempre melancólico sorriso,
nossa despedida
ao mesmo tempo aguardada e temida.
perda e alívio.
aquele que disser que os sentimentos conflituantes não são capazes de morar juntos
não viveu o suficiente do amor doído.
toda sua desilusão programada.
toda sua saudade já vivida por antecipação.
e o sorriso melancólico,
sempre ele.
sempre.
ele, que sabe do esgotamento.
da explosão, nem faísca.
da urgência, passividade.
nunca mais vou te ver.
e tudo bem.
nossa despedida
ao mesmo tempo aguardada e temida.
perda e alívio.
aquele que disser que os sentimentos conflituantes não são capazes de morar juntos
não viveu o suficiente do amor doído.
toda sua desilusão programada.
toda sua saudade já vivida por antecipação.
e o sorriso melancólico,
sempre ele.
sempre.
ele, que sabe do esgotamento.
da explosão, nem faísca.
da urgência, passividade.
nunca mais vou te ver.
e tudo bem.
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